Acostumada com inundações, São Paulo não planejou para a seca

Fonte: Planeta Sustentavel

Diante desse outro extremo climático, a expansão desorganizada das periferias, a falta de investimentos em preservação e a poluição dos rios cobram seu preço

Na estrada do campo limpo, na Zona Sul de São Paulo, o piscinão Sharp passaria quase despercebido não fosse seu cheiro nada agradável. De 1980 até 2002, uma célebre companhia japonesa que lhe empresta o nome produzia televisores ali. Mas, hoje, por trás dos muros e das grades, além dos guardas que operam em plantões contínuos de 24 horas, é difícil imaginar que aquele “buraco” de concreto armado tenha sido outra coisa no passado. Com 15 metros de profundidade, o Sharp ocupa uma área de 94 mil metros quadrados e tem capacidade para reter 500 milhões de litros d’água do córrego Pirajuçara, afluente do rio Pinheiros. “É uma bela obra de engenharia estrita para abater os picos de cheia na jusante – a parte mais baixa de um curso d’água partir de sua foz. Cerca de 500 mil pessoas em oito bairros são beneficiadas na região com o piscinão, mas ele só tem propósito se chove. É absurdo pensar que se pode beber dessa água depois”, conta Ney Meyer, engenheiro civil do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) do estado de São Paulo, que atua na construção e manutenção de piscinões há 35 anos.

O Sharp é o segundo maior deles na capital paulista. Em tamanho, perde só para o Guamiranga, que tem 30 metros de profundidade e pode abater 850 milhões de litros em cheias do Tamanduateí, evitando que locais como o Mercado Municipal e os bairros Mooca e Vila Prudente sejam inundados nos verões. Ao todo, a região metropolitana possui 29 piscinões, com capacidade de reservação de 5,83 bilhões de litros d’água. “Termos piscinões chega a ser ironia durante uma crise de abastecimento de água. Na prática, água não falta, mas está poluída por uma cidade que cresceu demais e de forma desordenada. Todo mundo quer asfalto e água encanada, mas ninguém quer viver ao lado de um rio ou córrego sujos também”, comenta Meyer.

Diante da crise hídrica na maior metrópole do país no último ano e meio, alguns sondaram a possibilidade de usar essa infraestrutura antienchentes como reservatórios para abastecimento humano. Meyer é categórico ao afirmar que no curto prazo a alternativa é inviável. Para tanto, a cidade teria de começar um caro e exaustivo trabalho de recuperação de seus principais rios e ampliação do tratamento de esgoto. “A água que chega ao Sharp pelo Pirajuçara é a mesma do rio Pinheiros. Com ela vem todo tipo de poluição que a cidade gera. A cada precipitação são tiradas toneladas de resíduos e milhares de metros cúbicos de lodo tóxico dos piscinões”, explica o engenheiro. Assim como o Pinheiros, os rios Tietê e Tamanduateí, que também cruzam a capital, estão poluídos por efluentes despejados sem tratamento. A cidade coleta 97% do esgoto, mas o tratamento atinge 75% desse total, apontam dados de 2013 da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). O que sobra é jogado nos rios, córregos e lagos. Somente de esgoto industrial – até seis vezes mais tóxico que o residencial -, são 10 milhões de litros por hora, ou dois lagos como o do Parque Ibirapuera por dia, segundo estudo da Fundação Getulio Vargas. “Há mais cobertura de sinal de redes móveis de telefonia do que de saneamento”, diz o engenheiro do Daee.

Nos parâmetros de qualidade do Conselho Nacional de Meio Ambiente, o Pinheiros é considerado um rio de classe 4, ou seja, altamente poluído. Não é para menos. Segundo a Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, 40% do esgoto gerado nas proximidades é despejado em sua bacia, que se estende por 25 quilômetros dentro do perímetro urbano. Uma triste estimativa entre ambientalistas e hidrólogos é que o Pinheiros teria apenas um quinto do volume atual se não recebesse esses resíduos de outros córregos, galerias e ligações sanitárias clandestinas. Sem falar do que vem das ruas.

Na última grande chuva de março de 2015, por exemplo, o resultado não foi diferente. No Sharp, onde a água chegou a 13 metros, foram necessários dois dias para que as três bombas eletromecânicas com capacidade de 360 litros por segundo revertessem a água para uma galeria pluvial. A limpeza do que sobrou depois da água ainda levaria duas semanas com o trabalho de seis homens e duas retroescavadeiras que recolhem a lama tóxica para uma área de secagem sob o sol. Brinquedos, latas, pneus, sacos plásticos e embalagens variadas, além de dois cachorros mortos, foram levados a um aterro sanitário em quase 200 viagens feitas por caminhões com capacidade para 12 toneladas.

Desde o fim da década de 1990, foram investidos 430 milhões de reais em projetos contra enchentes como o Sharp, segundo dados do Daee. “Um planejamento urbano voltado para minimizar os riscos da abundância de água em São Paulo, mas não para a possibilidade de outro extremo climático ainda mais perigoso: a seca. Tudo combinou para a atual crise de abastecimento – o calor, a falta de chuvas, o consumo em alta da população e a poluição”, afirma Vicente Adreu, presidente da Agência Nacional de Águas (ANA). No Sistema Cantareira, principal reservatório da cidade, que abastece 47% dos moradores da capital e outras dez cidades da metrópole expandida, a estiagem foi a mais severa em 62 anos. No verão de 2014, choveu 70% do previsto para a época pelos modelos climatológicos montados pela Sabesp. De janeiro a junho do ano passado, a quantidade de água que entrou nos reservatórios correspondeu a 15% da média histórica.

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