Durante muito tempo os indícios do gigantesco crime permaneceram ocultos: para a chegada de sua noiva italiana, a princesa Teresa Cristina, em setembro de 1843, Dom Pedro 2º mandou aterrar às pressas o cais do antigo porto do Rio de Janeiro. Entre 1774 e 1831, 700 mil escravos haviam desembarcado aqui, mais do que em qualquer outra parte do mundo. Mas nada isso interessava ao imperador.
Os africanos que não sobreviviam a travessia atlântica eram carregados até o alto do morro vizinho e jogados num monte, junto com lixo caseiro e vacas mortas. Em 1996 uma família descobriu esse Cemitério dos Pretos Novos sob os alicerces de seu casarão. O memorial erigido pelos moradores está agora ameaçado de fechamento, pois há mais de um ano a municipalidade carioca não contribui com nem um centavo.
E no entanto faz um ano que o velho bairro portuário do Rio, na época apelidado “Pequena África”, é Patrimônio Mundial da Unesco, tendo o Cais do Valongo como peça central. Na verdade, seria um imã turístico por excelência. Mas para o Brasil oficial, a memória do passado escravagista parece ser indesejada até hoje.
Abolição a contragosto
Em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, a princesa herdeira Isabel aboliu a escravatura, sem uma guerra civil sangrenta, como nos Estados Unidos, nem uma revolta de escravos bem-sucedida, como no Haiti, em 1794.
Depois que a Inglaterra proibira o Brasil de praticar o tráfico negreiro transatlântico, com a Lei Aberdeen de 1845, passou a haver carência de mão de obra nas plantações locais. Mas ela foi progressivamente coberta pelos imigrantes europeus, mais eficientes no trabalho do que os escravos rebeldes.
O Brasil foi o último país das Américas a dar fim à escravidão, e isso só depois de esse sistema econômico ter se esvaziado. O balanço de seus 350 anos é atroz: um de cada dois africanos traficados foi parar no Brasil, 2 milhões só no Rio, um total de 5,8 milhões ao longo do litoral.
A sede de suor humano das plantações brasileiras era insaciável. Calcula-se que um entre dez africanos já morria na travessia. Chegadas ao país, as famílias eram separadas; os homens enviados para o trabalho no campo nas regiões mais distantes, enquanto suas companheiras, estupradas pelos senhores brancos, colocavam no mundo uma geração de brasileiros após a outra. Aos senhores não bastava explorar a natureza e os seres humanos, eles dominavam seus servos literalmente em carne e osso.
Apesar disso, mantém-se até hoje a crença de que a escravidão no Brasil foi mais humana do que em outras partes. Contribuem para tal as imagens e relatos que chegaram daquela época, os quais raramente refletiam a cruel realidade.
Legado nefasto
A libertação em maio de 1888 não foi para os escravos a festa de alegria anunciada oficialmente, mas, na maioria dos casos, uma catástrofe econômica. Sem terra, sem um só real de capital inicial nem qualquer formação profissional, eles foram entregues a seu destino. E lá se encontram, até hoje.
Milhões de afro-brasileiros vivem atualmente sob as mesmas condições precárias que seus ancestrais, libertados 130 anos atrás. Os pobres barracos das favelas das periferias brasileiras lembram os do século 19. Há milhões de brasileiros que ainda não chegaram ao Brasil. Das cerca de 60 mil vítimas de violência, a cada ano, dois terços são jovens negros, assim como dois terços dos detentos nas penitenciárias.
Para eles, o Brasil não oferece nenhuma outra perspectiva além do ciclo, já iniciado na escravidão, de violência, de rebelião contra a sociedade hostil e contra si mesmos. Enquanto os brancos eram e são intocáveis, os negros voltam sua violência contra si, em desesperança e ódio próprio.
Não há como simplesmente descartar o legado nefasto da escravidão, explica o psicanalista italiano Contardo Calligaris, que vive no Brasil desde a década de 80. Cada brasileiro, diz ele, traz em si a figura do colonizador, do dominador e explorador brutal: “Todas as relações de poder do Brasil são absolutamente habitadas pelo fantasma da escravidão.” O poder se expressa como dominação física sobre o outro, uma assombração da escravatura que se recusa a desaparecer.
Protagonistas da própria história
A própria escravidão tampouco desapareceu. “Ainda se imagina um escravo como o remador acorrentado das galés, à la Hollywood”, observa frei Xavier Plassat. “Mas, em vez de correntes, as pessoas são escravizadas hoje por dependências econômicas.” Desde os anos 80, o dominicano francês combate a moderna escravatura com a Comissão Pastoral da Terra. Sob sua pressão, o governo decretou em 1995 a lei contra o trabalho escravo.
Desde então, foram libertados 54 mil trabalhadores escravos, os quais se esfalfavam, sem pagamento justo, nos pastos da Região Amazônica, nas fábricas têxteis ilegais de São Paulo ou nas minas de carvão do Nordeste.
No fim de 2017, surpreendentemente, o presidente Michel Temer tentou abrandar o conceito de escravidão moderna, eliminando o elemento de dependência forçada como critério. Diante da indignação internacional, contudo, recuou rapidamente.
A sombra da escravatura só desaparecerá quando a população brasileira de cor finalmente se tornar protagonista da própria história, acredita Celso Athayde, ativista do movimento negro.
Por fundar o primeiro partido para negros do país, a Frente Favela Brasil, ele foi acusado de discriminar os brancos. Mas já bem se viu o que aconteceu quando as escolas-de-samba se abriram para os brancos, rebate Athayde: em pouquíssimo tempo, eles é que passaram a mandar nelas. Tal coisa não vai acontecer em seu partido, promete.
Os brancos não se contentam nunca com um papel coadjuvante, eles precisam sempre ditar o tom, prossegue Athayde. “Nós, negros, ao contrário, preferimos nos esconder atrás dos brancos, porque temos medo do papel principal. Mas precisamos finalmente aprender a assumir esse papel.”
Fonte: Deutsche Welle