De forma assustadora, recente relatório do Banco Mundial revela como o diagnóstico do organismo internacional relativo à Zona Franca de Manaus apresenta-se desprovido de evidências técnicas. Denominado “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” e encomendado pelo Ministério da Fazenda de nosso país, o estudo traz ainda uma série de recomendações para diferentes setores da ação pública, que repercutiram nacional e internacionalmente, e muitas delas também se mostram passíveis de questionamentos. Torna-se, portanto, imprescindível exigir mais rigor e melhor avaliação da entidade internacional sob o risco de vermos a implementação de políticas públicas baseadas em premissas equivocadas.
No caso específico da proteção à Amazônia, tema deste artigo, o relatório afirma que “A Zona Franca de Manaus, que custou 0,38% do PIB em isenções fiscais em 2015, também parece ser pouco eficaz e deveria ser, pelo menos, reformulada para que contribua de maneira eficaz para a economia local”. No relatório, a análise da Zona Franca de Manaus mereceu as concisas três linhas acima reproduzidas, algo bastante precário para tema tão fundamental que, em suma, é a questão da Amazônia brasileira.
O mais grave é que a conclusão do banco se baseia em um único documento de apoio: um texto para discussão elaborado pela consultoria legislativa do Senado brasileiro. Quer dizer, o documento-fonte não configura trabalho submetido ao crivo de revisão independente. Trata-se de avaliação que não apresenta rigor acadêmico para embasar uma conclusão com a seriedade que se esperaria do Banco Mundial. A superficialidade da análise que sustenta a leitura feita pelo organismo internacional leva ao descrédito o diagnóstico produzido a pedido do governo federal.
Assim, a composição da equipe do relatório não reflete “as melhores práticas internacionais” que o relatório diz seguir. O Banco Mundial não pode se dar ao luxo de cometer erros elementares ao não montar uma equipe interdisciplinar para lidar com a complexidade da Zona Franca de Manaus. É impressionante que um tema diretamente relacionado com o futuro da Amazônia seja tratado sem especialistas em meio ambiente.
O Banco Mundial deveria ter envolvido o seu departamento de meio ambiente e o governo brasileiro deveria ter incluído técnicos do Ministério do Meio Ambiente e não apenas da Fazenda. Vale lembrar que a análise do Banco Mundial deveria ter considerado os principais acordos internacionais da atualidade, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e o Acordo de Paris sobre mudança climática. O relatório ignora solenemente tal documentação, fruto de muitas negociações entre povos, e comete erros primários inadmissíveis.
A Zona Franca de Manaus tem sido instrumento importante para a redução do desmatamento na Amazônia e a redução das desigualdades sociais entre a região Norte e o restante do Brasil. Ao concentrar as atividades econômicas no Polo Industrial de Manaus, os agentes econômicos e as forças políticas relacionadas à grilagem de terras, extração ilegal de madeira e desmatamento ilegal possuem menos força no Amazonas do que nos demais estados da região. Ainda que sem intenção, a Zona Franca de Manaus se tornou uma das mais eficazes políticas de redução do desmatamento na Amazônia. Foi exatamente esse benefício indireto para a conservação ambiental que levou o Congresso Nacional a aprovar a extensão da Zona Franca de Manaus por mais 50 anos, de forma quase unânime.
Pela complexidade de sua ação, a Zona Franca de Manaus requer uma análise mais séria e aprofundada que aponte rumos para a sua reformulação e seu aprimoramento. É necessário ter uma visão de longo prazo, considerando o dinamismo das novas tecnologias e arranjos produtivos globais, especialmente na indústria de eletroeletrônicos. Torna-se imprescindível articular melhor a demanda com a formação de profissionais pelas universidades e escolas técnicas da região.
Faz-se urgente desenvolver instrumentos específicos para apoiar a bioeconomia baseada em produtos da biodiversidade amazônica. É preciso que as empresas do Polo Industrial de Manaus se envolvam diretamente na promoção de programas de conservação ambiental, redução da pobreza e adaptação às mudanças climáticas das sociedades amazônicas. E cada vez mais se mostra fundamental modernizar e fortalecer a gestão da Suframa e do Centro de Biotecnologia da Amazônia. Esses são temas centrais em qualquer análise séria sobre o futuro da Zona Franca de Manaus.
A falha flagrante do Banco Mundial em relação a tema que a cada dia se mostra de maior interesse para a preservação da vida no planeta, pode ter, paradoxalmente, produzido efeito de mérito: deixa clara a necessidade de o Brasil analisar a Zona Franca de Manaus de maneira mais abrangente, com abordagem interdisciplinar e também holística. Sem essa necessária sofisticação, corremos o risco de reduzir o debate sobre a importância da Amazônia para o futuro do Brasil a meros percentuais de custo de PIB.
*Superintendente-Geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), PhD. por Harvard. Foi o primeiro secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas
**Ex-secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, atualmente é presidente do Conselho de Administração da Fundação Amazonas Sustentável (FAS)
[Nota da Página22: O Banco Mundial foi convidado a escrever um artigo em resposta a esse assunto, de forma a ampliar o debate, mas declinou.]