Com arte e diversão, cidadãos aprendem a cuidar do ambiente onde moram

Onde há lixo, entram vassouras, pá, saco para colher. Onde há terrenos vazios, desabitados, degradados, entram as cores, a falação, as risadas e vida. Onde há um perigo real de morte por falta de cuidados ou desinformação, entram a informação passada de forma divertida, lúdica.

Onde há desprezo pelo local onde se vive, entram outras possibilidades, entram pessoas que lembram que ser morador é, também, cuidar do ambiente onde se vive e não cruzar os braços à espera de alguém que venha fazer isto. Onde não chega a alegria, entram os palhaços, dando novos tons e cores ao ambiente.

Mora na minha vizinhança o palhaço Café Pequeno, que o artista Richard Riguetti interpreta. Como acredito que vizinhos precisam se conhecer, conversar sempre que possível, trocando informações sobre o espaço onde vivem, exercito esta espécie de arte da boa convivência, também sempre que posso. E acabo descobrindo coisas muito legais que acontecem aqui perto de mim ou que são conduzidas por pessoas vizinhas.

Foi assim que, numa esquina, fim de tarde, batendo papo, Richard me contou sobre o trabalho que o Instituto Escola Livre de Palhaços (Eslipa), criado por ele há sete anos, vem fazendo nas comunidades de quatro estados por onde passam os dutos de combustível fóssil, para alertar as pessoas que vivem nesses entornos sobre os cuidados que precisam ter para não causarem uma tragédia. Ele teve a ideia, mostrou para a Transpetro, companhia que cuida do transporte de combustíveis, o projeto foi aprovado e, desde então, vem acontecendo.

Dutos são o meio mais eficaz de transportar produtos combustíveis Brasil e mundo afora. Enfiados na terra numa profundidade considerada segura, eles ajudam a retirar das estradas os caminhões que estariam conduzindo tais produtos caso não fossem os dutos. Até aí tudo bem. Se precisamos enfrentar os percalços, as sequelas que o desenvolvimentismo nos reserva, que seja de modo mais seguro também para o meio ambiente.

Só que a malha de dutos no Brasil, que começou a ser operada no ano 2000 e hoje já ultrapassa os 14 mil quilômetros – segundo o site da Transpetro, empresa responsável por transportar o combustível – tem estado perigosamente próxima a comunidades. Isto é resultado da necessidade de moradia, da falta de uma política habitacional que dê conta de tanta gente que busca, legitimamente, as chances que uma grande cidade podem oferecer. Acabam construindo casas onde não deveriam ser construídas. Acabam se tornando vizinhos também de malhas de dutos.

É preciso alertar, portanto. Vídeos, cartilhas, bate-papos, tudo vale na hora de dizer a alguém que precisa tomar cuidado com o entorno para não causar tragédias. Dentro dos dutos, o combustível está sob pressão para poder ser transportado. E é com toda força que sairá para fora se os canos, revestidos de forma segura, forem abraçados por raízes de árvores, por exemplo.

Ou, o pior dos mundos, se a desinformação fizer com que ladrões decidam furar o cano para roubar combustível, achando que dali sai a gasolina como é comprada no posto. A tragédia que tirou a vida da menina Ana Cristina Pacheco Luciano, de 9 anos, em Duque de Caxias em abril deste ano, foi causada por pessoas que cometeram a insanidade de perfurar um desses canos e roubar gasolina, pondo em risco toda a comunidade.

Como já disse certa vez o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o conceito de comunidade numa sociedade que preza a qualidade de vida é aquele “em que ninguém pode ganhar se seu vizinho não ganha”.

Richard Riguetti é o presidente do Instituto Eslipa e gestor do projeto que se encarrega de informar as comunidades

sobre a melhor maneira de conviver com uma malha de canos que conduz um produto tóxico e perigoso. Por isto o programa se chama “De olho no Duto” . Mas, mais do que isto, o que os artistas e cidadãos formados pela Eslipa, única escola de palhaços gratuita na América Latina, levam às pessoas das comunidades escolhidas é que é possível ter respeito ao lugar onde moram, às pessoas que são vizinhas. Nas apresentações das oficinas, que duram cerca de seis horas, tudo acontece. As conversas são incentivadas. Que entrem palavras em vez de armas.

“O palhaço entra com a verdade neste jogo da vida. O palhaço olha no olho da pessoa em vez de usar esta comunicação que vem sendo cada vez mais digital. Nas comunidades que visitamos é isto o que fazemos. A gente ensina as pessoas a terem consciência de que moram numa área onde talvez ela nem devesse morar. A comunidade pode tomar conta daquele espaço, e felizmente temos tido este resultado em muitas delas. É gratificante quando a gente volta a uma região onde já estivemos e percebe que o lugar usado por nós para montar nossa oficina foi totalmente recuperado pelos moradores”, disse-me, por telefone, a Palhaça Francisquinha, que mora no ABC Paulista, uma das artistas que trabalha no projeto com sua própria companhia, a “Circo do Asfalto”, e também é egressa da Eslipa.

É do que se trata. A arte da palhaçaria tem uma linguagem própria, que estimulará naquelas pessoas atitudes que possam melhorar a convivência. Os palhaços e malabaristas vão a 101 comunidades dos quatro estados por onde passam os dutos – São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo – e voltam muitas vezes. São seis trupes, todos egressos da Eslipa.

No bate-papo da esquina, Richard Riguetti explica, a meu pedido, a essência da linguagem dos palhaços e diz que tais artistas são “a menor distância entre duas pessoas”:

“A grande arte, a grande poética do palhaço, é reconstituir o tecido emocional da população”, disse ele.

A Eslipa foi criada há sete anos, o “De olho no duto” está nas comunidades há cerca de dois anos e há um ano Richard Riguetti anda pelo Brasil afora encenando a vida de Paulo Freire, pensador gigante, que tanto estimula a alegria, o encantamento, apesar dos revezes que a civilização nos impõe. O artista explica o processo de criação da Eslipa, que até hoje já formou 125 artistas cidadãos de sete países diferentes:

“Por se tratar de uma linguagem (a dos palhaços) cuja transmissão da arte e do ofício se dava, e ainda se dá, pela via oral, senti necessidade de abrir um campo de experimentação para praticar essa transferência de saberes e conhecimento fincados em metodologia implantada pelos palhaços e palhaças no Brasil, do Brasil, para o mundo. Em vez de aceitar de braços cruzados as técnicas que vêm de fora do Brasil”, disse-me ele.

Eu não tenho este dado, mas sou capaz de apostar que muita gente que assiste as oficinas do projeto “De Olho no Duto”, além de aprender o que precisa, fica com vontade de praticar palhaçaria. Que assim seja. A arte tem mesmo esta capacidade, de transformação.

Fonte: G1

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