Como viver em grandes cidades, respeitar o outro e mudar hábitos em prol do meio ambiente?

Viver numa grande cidade pode não ser nada fácil. Muita gente significa mais lixo, e isto precisa ser bem administrado. Muita gente significa maior necessidade de ter políticas públicas para um deslocamento que não prenda as pessoas durante horas dentro de um veículo por causa do engarrafamento ou por falta de transporte. Muita gente significa também que haverá violência, sobretudo se a política de segurança enveredar pelos caminhos do revide, tomando todos por um. E tem também as privações, sobretudo nos países pobres, onde falta até saneamento para todos.

Mas, antes de se pensar que o melhor é conter o fluxo de pessoas para as grandes cidades – o que seria mesmo impossível, a julgar que hoje 54% da população mundial vivem em áreas urbanas e que há projeção de que em 2050 sejam 66% – vamos olhar as cidades sob outro aspecto. As pessoas, quando estão juntas, criam. E dependemos das inovações para superar vários problemas. Prosperidade, riqueza, crescimento econômico (sustentável) só se consegue se houver pessoas que ajudem.

Para além dessas questões, as grandes cidades exigem que se pense em relações humanas e, mais do que tudo, em maneiras de promover entre nós as mudanças de paradigma que precisamos para vencer os obstáculos que surgem por conta das mudanças climáticas. Por que é mais fácil aceitar o fim dos canudos plásticos e das sacolas plásticas em supermercados do que passar a andar a pé, utilizando o transporte público, por exemplo?

Cristina Mendonça, mestre em Ciências e Engenharia Urbana pela PUC-RJ, onde ministra cursos, ajudou-me a dividir pensamentos sobre essas e outras questões. O mote dos estudos de Cristina, atualmente, é justamente a mudança de paradigmas, que não deve ser imposta mas que é necessária para fazer valer, por exemplo, as centenas de tratados, acordos e compromissos que os líderes de nações têm assinado. Mas o fato é que a natureza humana resiste a mudanças, então como conseguir isto?

Conversamos mais de hora sobre o assunto, fazendo exatamente aquilo que as cidades nos convidam a fazer: compartilhar pensamentos. E o resultado da conversa está reproduzido abaixo.

Por que os humanos resistem tanto a mudanças?

Cristina Mendonça – A dificuldade é quando a mudança toca em alguma coisa pessoal em cada um de nós. Mudar um hábito é complicado quando se mexe com algo íntimo, com uma questão profunda, de quem a gente acha que a gente é. Um exemplo que gosto de dar: passar uma lei para banir canudos ou sacolas plásticas não foi muito difícil. Houve mobilização forte, claro, mas passou. Isto porque é um hábito que não me afeta enquanto identidade, ou seja, sem o plástico eu continuo sendo aquilo que sou.

Qual o tipo de mudança que pode mexer com esta necessidade identitária?

Cristina Mendonça – Vou dar outro exemplo: eu já trabalhava em consultoria na área de sustentabilidade e estava ajudando uma prefeitura a fazer sua campanha do Dia Mundial sem Carro. E eu me vi chegando, para aquele evento, de carro! Claro que refleti a respeito e tomei a decisão, naquele dia, de vender meu carro e passar a ser uma pedestre, usando transporte público inclusive. E me lembro, até hoje, da sensação que tive quando desci no elevador do meu prédio e, em vez de apertar para descer no andar da garagem, apertei para descer no térreo. Parecia que eu estava nua, sem aquele objeto que, entre aspas, dá poder e segurança.

Quando aconteceu o click interno que levou você a querer refletir e viver uma mudança?

Cristina Mendonça – Comecei a minha carreira como engenheira química, no lado poluidor, na área de petróleo e gás. Foram muitos anos dando inúmeros benefícios para tais indústrias, mas analisando tudo de forma fragmentada, sem ter noção dos impactos que elas causavam. Comecei a ficar angustiada vendo a temperatura do planeta avançar. Fiz mestrado em engenharia urbana, abri uma empresa de consultoria e fui convidada para fazer parte da organização, onde trabalhei por onze anos. Decidi sair porque queria usar uma abordagem mais sistêmica: precisamos promover o uso de tecnologias, novas formas de governança, políticas públicas e também considerar os aspectos culturais. Quais são os valores compartilhados por aquela população, como é a visão de mundo, os pensamentos, emoções, dos habitantes de determinada área urbana. Como honrar tais valores sem querer impor meus valores? Vai ser este meu mote, por exemplo, no curso que vou dar na PUC este mês. Porque a gente acaba impondo nossos valores sem considerar os valores do próximo.

Viver em cidades grandes requer, justamente, este respeito pelo humor do outro, pela rotina do outro. Não é mesmo fácil. Como conseguir adequar?

Cristina Mendonça – Desenvolvendo nova musculatura para absorver situações de tensão, de polarização. Percebendo que muitas pessoas não conseguem enxergar o lado de fora da casa onde moram, muito menos o país, o mundo. É possível que esta percepção seja muito forte para determinadas pessoas. E percebendo que problema não são os opostos, mas como a gente faz para fazer nascer algo novo, não escolher um ou outro lado.

Você acha que a cidade tem gente demais? Acredita que seria mais fácil conviver numa densidade urbana menor?

Cristina Mendonça – A questão não é o número de pessoas, mas a consciência dessas pessoas. Eu posso ter muitas pessoas abrindo mão do carro para que a gente possa ter um convívio mais harmonioso, sem poluição do ar, posso ter gente que cuide para não gerar resíduos desnecessariamente. A questão é a forma e a consciência, o que vai influenciar também na infraestrutura que se tem na cidade. A infraestrutura também é uma consequência da maneira como seus habitantes se comportam. Por isso acredito que é preciso mobilizar as populações.

Mas nem todo mundo se engaja em tais mobilizações…

Cristina Mendonça – Uma pessoa que não tem a capacidade cognitiva e emocional para absorver complexidades, tende a pensar assim: “bem, eu já elegi meu prefeito, já elegi meu vereador, então não quero saber de mais nada, eles é que se virem”. A questão é ouvir essas pessoas.

Mas como?

Cristina Mendonça – Não será mandando emails de convocação, claro, porque se a pessoa não tem cabeça para isso, vai deixar de lado. Investir no contato de agentes comunitários com a população pode ser uma saída, criando algum tipo de atividade que desperte o interesse. Sem impor, mas honrando e respeitando a forma como cada um é. Quem convida precisa ter uma habilidade para lidar com aquela situação, tratar o outro como alguém que pode participar e trazer ideias, gerar benefícios. Vai ter a diferença de ponto de vista, de valores, conflitos, mas isto não vai virar uma guerra. Vai viver o conflito numa alta vibração porque quem está fazendo a mediação está honrando a diferença.

A questão é que cada um tem uma noção do que é viver num bem estar. Como conciliar? Se meu vizinho gostar de ouvir música alta, estridente, e eu quiser meditar?

Cristina Mendonça – Num relacionamento intimo, se você não tiver um valor compartilhado com aquela pessoa, o relacionamento não se sustenta. Na sociedade também é preciso ter um valor compartilhado na comunidade, porque se não tiver, a vizinhança colapsa. Esta situação que você citou é típica, de valores não compartilhados. Como se agrupa pessoas, honrando o que elas gostam? Quantos planejamentos urbanos em comunidades destroem todo o lado cultural que aquela comunidade tinha naqueles becos, ruelas, porta a porta. Aquilo era a rede das pessoas. De repente, constrói-se um prédio, com a melhor das intenções, e se acaba com a troca que existia nas esquinas. Não se pode fugir disso.

Você está falando de valores intangíveis…

Cristina Mendonça – Sim, no planejamento urbano não podemos ficar só na parte de políticas públicas, finanças, tecnologia. Hoje o nosso sistema capitalista ele é monocapitalismo porque só prioriza o capital financeiro. Mas temos outros capitais: social, cultural, ecológico, humano, psicológico… Como é possível dar luz a esses capitais?

Fonte: G1

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