A história é célebre: entre 1831 e 1836, o então jovem naturalista Charles Darwin – dos 22 aos 27 anos – deu a volta ao mundo a bordo do navio britânico HMS Beagle, realizando coletas e pesquisas de rochas e seres vivos, o que o levou mais tarde a elaborar a teoria da evolução das espécies, que, apesar do nome não é teoria, mas fato.
O que nem todo mundo sabe é que a viagem passou pelo Brasil entre fevereiro e julho de 1832 e em agosto de 1836. O que ainda menos gente conhece é a descrição geológica que ele fez das chamadas “beachrocks”, rochas de praia, no litoral de Maricá, 57 quilômetros ao norte da cidade do Rio de Janeiro, que, segundo um grupo contrário ao projeto, estariam ameaçadas pelo projeto de construção de um porto na região.
Segundo Kátia Leite Mansur, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que pesquisa essas rochas desde 2008 e integra, junto com outros pesquisadores, ambientalistas e moradores da região, o movimento contra o empreendimento, as primeiras notícias sobre a construção na praia de Jaconé, com investimentos de R$ 5,5 bilhões, surgiram em 2010.
Ele ocuparia a área marinha adjacente à Ponta Negra até a base da Serra de Jaconé. Primeiro, seria apenas um estaleiro, mas em 2011 foi anunciada construção do Terminal Ponta Negra (TPN) para escoar a produção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), da Petrobrás, já em construção em Itaboraí, a 60 quilômetros de Maricá.
A DTA Engenharia, empresa responsável pelo projeto, diz que ele já foi alterado para reduzir o impacto às beachrocks, após uma ação judicial promovida pelo MPRJ, com liminar deferida desde 2015.
“O processo ainda não foi julgado e, independentemente da discussão na ação quanto à real passagem do naturalista pela parte da praia de Jaconé onde está situado o TPN e a inexistência de estudos de sua autoria sobre eles, o projeto foi alterado, com a exclusão de dois terços das atividades inicialmente licenciadas”, explica Juliana Digiorgi, gerente administrativa da empresa.
As beachrocks, termo clássico que em português pode ser traduzido para “rochas de praia” ou, mais recentemente, “praianito”, são formadas por sedimentos depositados em uma praia antiga e que se transformaram em uma pedra pela precipitação de carbonato de cálcio entre os grãos. Elas ficam submersas e eventualmente afloram durante ressacas do mar e maré baixa.
“Assim, elas são o registro de uma antiga linha de praia”, explica o geólogo Renato Rodriguez Cabral Ramos, colega de universidade de Kátia e também integrante do movimento contra a instalação do porto.
Em sua viagem pela então província do Rio de Janeiro, Darwin encontrou as beachrocks na praia de Jaconé, entre Maricá e Saquarema, em 9 de abril de 1832, e as descreveu em sua caderneta de campo. Depois disso, elas ficaram esquecidas por mais de 150 anos.
“Somente na década de 1990, fragmentos desse tipo de rocha foram identificados pela arqueóloga Lina Kneip, em sambaqui descoberto em Saquarema”, diz a geóloga Kátia.
Patrimônio de Influência Internacional
Na época, o jovem naturalista tinha tanto interesse por biologia quanto por geologia, neste caso influenciado pelo seu então livro de cabeceira Princípios da Geologia, de Charles Lyell, cujo primeiro dos três volumes havia sido lançado dois anos antes, em 1830 – o segundo saiu em 1832 e o terceiro em 1833.
“As descrições geológicas efetuadas por Darwin no Rio de Janeiro, e nas demais localidades por ele visitadas, são Patrimônio de Influência Internacional, pois são parte indissociável de sua obra e contribuíram para sua formação científica e elaboração teórica”, diz Kátia. “Estas rochas e localidades não são patrimônios de estados ou países, mas da ciência, com relevância mundial.”
Além de históricas, as beachrocks, também conhecidas como arenitos de praia e, na região Nordeste, como arrecifes, têm importância científica. “Elas podem ser utilizadas para indicar antigos níveis do mar, pois as frequentes conchas de moluscos encontradas nelas são datáveis (pelo método do Carbono 14, por exemplo), assim como o carbonato de cálcio que as cimenta entre si”, diz Ramos.
“As conchas de moluscos das beachrocks de Jaconé foram datadas em torno de 8 mil anos e o cimento em 6 mil anos. A rocha de praia de Jaconé, portanto, é uma das mais antigos do Estado do Rio de Janeiro.”
Segundo Kátia, no caso das descritas por Darwin em Maricá, elas são o testemunho de uma antiga praia que existiu na região há cerca de 8 mil anos e indicam um nível do mar 50 cm mais baixo que atual “Isso auxilia no entendimento das variações climáticas nos últimos milhares de anos”, explica. “Elas também podem ser utilizadas para entender a ocupação humana pré-histórica da região, pois seus fragmentos foram coletados pelos construtores de sambaquis, primeiros habitantes do litoral.”
Agora essa riqueza histórica, geológica e ecológica pode estar em perigo, caso a construção do porto venha de fato a se concretizar. “O projeto se consolidou em dezembro de 2013, quando a empresa construtora submeteu o Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) para licenciamento pelo Inea, do Rio de Janeiro”, conta.
Antes disso, era necessário liberar a área para a construção.
“Como no Plano Diretor de Maricá a área era protegida, a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura, em outubro de 2013, alteraram a categoria de zoneamento para ‘Área Especial de Interesse Urbanístico e Econômico, voltada para atividades de logística, portuária e industrial'”, explica Kátia. “Só depois disso foi que a empresa apresentou o EIA-Rima. A partir daí, diversas ações se sucederam e produziram uma situação de impasse.”
SOS Jaconé
Muito dessa situação se deve à luta dos moradores, ambientalistas, surfistas, pescadores e professores locais contra o empreendimento. “Tão logo a notícia da sua possível construção chegou à região, eles iniciaram o movimento ‘SOS Jaconé – Porto Não!’ e entraram em contato com diversos pesquisadores e instituições para angariar apoio para a proteção da área”, lembra Kátia.
“Inclusive entraram nos Ministérios Públicos Federal e do Rio de Janeiro com uma ação civil pública, porque a mudança no uso da terra na área não havia cumprido os trâmites legais e pela degradação que poderia ocorrer. Nesta época, fizeram contato conosco, que passamos a apoiá-los.”
A ação mais recente na Justiça se deu em julho, quando os dois Ministérios Públicos ajuizaram uma nova Ação Civil Pública junto à 3ª Vara Federal de Niterói, para impedir a consumação dos danos socioambientais do empreendimento. “Ela aponta diversos vícios encontrados em procedimentos administrativos de licenciamento do empreendimento”, diz Kátia.
“Cabe ressaltar que o empreendedor, por conta dos obstáculos que os beachrocks vêm impondo desde o início do projeto, decidiu modificá-lo no ano passado, tornando o mais modesto, diminuindo o investimento e o número de empregos gerados, que passou a ser cerca de 300.”
A BBC News Brasil procurou a prefeitura de Maricá para entender os motivos da construção do porto e sua importância econômica para o município, além do impacto na região – particularmente sobre as beachrocks de Darwin – e a mudança no plano diretor.
A prefeitura se limitou a enviar, por meio de sua Secretaria de Comunicação, a seguinte nota:
“Por se tratar de um empreendimento privado, quem responde sobre as questões do Terminal Ponta Negra é a empresa proprietária do projeto, a DTA Engenharia, de São Paulo. A Prefeitura já se manifestou publicamente por diversas vezes em apoio ao projeto – inclusive no âmbito do relatório de impacto ambiental que embasa a licença prévia já concedida pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) – por considerá-lo uma importante alternativa para o desenvolvimento econômico sustentável não só de Maricá, mas de toda a região.”
A DTA Engenharia, por sua vez, informou que o TPN tem como principal objetivo criar uma infraestrutura para o atendimento da indústria de exploração e produção de petróleo e gás, tanto no armazenamento quanto a movimentação de granéis líquidos.
“Seu volume de tancagem será de aproximadamente 3,5 milhões de m³ e terá pátio logístico de serviços de apoio”, informa Juliana Digeorgi, da DTA.
“A área total do empreendimento é de 152,32 ha e compreende um aterro hidráulico sobre lâmina d’água, um quebra-mar de proteção e a infraestrutura da retroárea com edifício administrativo.”
De acordo com ela, a previsão é a de sejam criados cerca de 1.700 empregos diretos e indiretos na construção e 4.000 na operação. “Todos os impactos relacionados ao TPN são objeto de processo de licenciamento ambiental em trâmite perante o Inea”, garante Juliana. “Estamos aguardando a deliberação para a emissão da Licença de Instalação, para que as obras sejam iniciadas.”
Fonte: BBC